Introdução

O Português e as Línguas Nacionais nos Países Africanos e em Portugal

As línguas e as questões linguísticas com elas relacionadas constituem eminentemente uma matéria de debate e de escolha política.

No Império Português, o interesse pelas línguas africanas nunca foi consensual ou pacífico. A partir de 1875, a Sociedade de Geografia foi palco de amargos debates entre defensores e detratores das línguas africanas. Às línguas de tradição oral, consideradas por muitos, pejorativamente, como meros “dialetos”, incapazes de resistir ao poder da língua escrita e estandardizada do colonizador, não lhes era reconhecido interesse de estudo. Os homens do terreno, os administradores preocupados com o controlo da população, questionavam a probidade dos tradutores/intérpretes que contratavam na sua relação com os chefes locais, manifestando, em diferentes ocasiões, o seu desconforto perante um português que consideravam cafrealizado e de que não entendiam uma palavra. Até ao final do século XIX, o conhecimento das línguas locais, a elaboração de dicionários e gramáticas e de obras sobre os usos e costumes dos povos indígenas foram sobretudo, embora não exclusivamente, da responsabilidade de um clero que assim conseguia uma melhor difusão da sua mensagem de cristianização. Ao longo do século XX, diferentes instituições administradas diretamente pelo Ministério das Colónias, ulteriormente Ministério do Ultramar, criaram programas de estudo e de ensino das línguas africanas para os funcionários coloniais. A administração das colónias assentava no domínio do território, na exploração dos seus recursos e da mão de obra, mas também promovia a assimilação de uma pequena franja da população à cultura e à língua portuguesas.

Com o fim do império colonial português, ao nascimento dos Estados africanos independentes associou-se o desejo de criar a sua própria nação, para a qual a escolha de uma língua nacional era crucial, embora não consensual. Por toda a parte, a adoção imediata do português como língua oficial (língua de administração e de ensino) e a sua relação com as línguas nacionais e com os crioulos africanos de base portuguesa foram objeto de debates que se prolongaram até à revisão dos seus estatutos, posteriormente consignados nas Constituições dos respetivos países.

Cada um destes países africanos, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, teve uma história específica quanto à relação das suas línguas com o português (língua de dominação colonial). A partir da independência, iniciou-se uma outra etapa, feita de continuidades e ruturas. Neste contexto, as opções linguísticas encobrem, de facto, relações subjacentes de dominação e conflito entre classes, ente elites políticas e culturais detentoras do poder de acumulação e distribuição dos recursos, nomeadamente os educativos.

Para os Estados recentemente independentes, a questão linguística inscrevia-se, inicialmente, na questão mais vasta da criação de uma nação e de uma cultura nacional, lugar onde se exerce o poder com as suas novas instituições. O final dos anos 80 e o início dos anos 90 obrigaram a uma avaliação mais complexa da questão linguística. A entrada num mundo globalizado e o abrandamento das guerras civis tiveram consequências na gestão e na administração dos territórios nacionais, nas novas mobilidades regionais, nas migrações rurais e urbanas e na implementação desigual dos planos de desenvolvimento. Neste novo quadro, é a irrupção dos falantes das línguas regionais e dos crioulos nos espaços da educação e escolarização e, também, nos contextos oficiais e nos media, que questiona as políticas linguísticas e as suas ações concretas, bem como o estatuto atribuído a essas línguas, nomeadamente nas Constituições.

As mudanças e as questões relevantes para cada um dos países africanos também têm repercussões em Portugal, recetáculo de migrantes e alguns opositores políticos, em vagas que se sucedem, ainda que por motivos diferentes, e que interpelam, nomeadamente através de políticas de alfabetização e escolarização, as relações entre o português e as línguas africanas e os crioulos de base portuguesa. Como é que o reconhecimento de direitos sociais, culturais e linguísticos das comunidades mais antigas dos afrodescendentes, por exemplo, ou mais recentemente estabelecidas na cidadania portuguesa, pode evitar a armadilha de um certo comunitarismo?

Três diretrizes principais poderão inspirar as contribuições para este Colóquio de modo a evitar um mero discurso ideológico ou uma discussão entre especialistas em linguística. Será de ter em conta que:

1. Uma rutura política não gera, necessariamente, uma rutura linguística nem de qualquer outro fenómeno cultural. Se há ligações a realçar entre a política e a historicidade das questões linguísticas, cada caso pertence a construções temporais diferentes.

2. Elementos culturais ligados ao período colonial perduram no espírito das pessoas, impregnam os atores pós-coloniais e chocam com os elementos de inovação das políticas linguísticas. A transculturalidade deve ser levada a sério, sem ser exclusiva das posições dos atores envolvidos na batalha linguística.

3. As experiências de terreno deverão ser particularmente valorizadas.

Joana Pereira Leite, Nicole Khouri